Minhas atividades profissionais naquela empresa da
Bahia alternavam entre serviços de campo, nas quais passava a maior parte do
dia, e trabalhos de escritório, quando estudava, planejava e analisava as
informações coletadas, elaborando mapas e secções geológicas, relatórios legais
aos órgãos competentes do governo federal.
No campo, eu caminhava por picadas previamente
abertas pelos técnicos de mineração, descrevendo observações visuais e
coletando amostras para análises posteriores. Lançava-as em mapas topográficos preliminarmente
sobre papel vegetal. Fechava a malha das trilhas nas áreas consideradas
positivas e as detalhava em mapeamentos subsequentes. Providenciava a abertura
de trincheiras nas zonas com ocorrência mineral, acompanhadas de furos de
sondagem rotativa a fim de investigá-las em profundidade.
Eu vestia perneiras de couro duplo até a altura dos
joelhos, me precavendo contra as cobras muito comuns na caatinga. Os colegas do
alojamento debochavam das perneiras e das minhas solicitações de soro
antiofídico. Até riram nas duas ou três vezes que mostrei as marcas de presas
nas perneiras decorrentes de botes de jararacuçu. A tal valentia sertaneja,
porém, se calou quando o filho de um funcionário foi picado pela mesma
variedade de cobra. Assim que soube do acidente, eu ordenei ao motorista que
voasse à casa da família do menino, munido de soro e injeção. A aplicação em
tempo do soro anulou a ação do veneno e salvou a vida do garoto.
Ziguezagueando pelas picadas, vez ou outra eu cruzava
roças, pequenas propriedades, casebres paupérrimos, rios e riachos geralmente
secos. A situação se agravava ao me deparar com plantações de sisal. Como
contrapartida à permissão em entrar nas propriedades, a empresa de mineração preservava
a plantação, interrompendo a picada ao longo da área plantada, retomando-a do
outro lado.
Dificilmente eu encontraria a continuação da picada
se contornasse a plantação, de grandes extensões e de formatos imprevisíveis. O
jeito era percorrê-la por dentro, me orientando pelo bom senso, até reencontrar
a picada. Mas era complicadíssimo atravessar por entre os pés de sisal, dotados
de folhas enormes, rígidas e pontudas, que se entrelaçavam à altura e acima do
meu corpo. Eu tentava afastar as folhas com os dedos de ambas as mãos. Mas as
folhas escapavam e me chicoteavam com as pontas, me furando por cima da
camiseta, ficando, ainda que superficialmente, cheio de pontos de sangue. Mais
zonas críticas adiante, mais perfurações, mais sangue, mais ardor agravado pelo
suor. Não restavam alternativas, senão ultrapassar o mais rápido possível, sem
perder a orientação.
Além das plantações de sisal, surgiam, no meio da
caatinga nativa, concentrações de calumbis, arbusto de galhos alongados e
flexíveis, recheados de espinhos curvados no sentido contrário ao que eu
caminhava. Assim que eu esbarrava em um galho, os espinhos me agarravam e me
prendiam. Ao tentar me libertar, os demais galhos forrados de espinhos me
abraçavam devido ao balanço que eu provocava naquele e nos arbustos ao redor. Era
como numa armadilha. Pontas de sangue, riscos avermelhados pelos braços e
pescoço, camiseta em farrapos. Haja calma para retirar os espinhos enfiados no
meu corpo, afastar cuidadosamente os galhos flexíveis, executar acrobacias,
avançar e, o mais rápido possível, me ver livre dali.
Abundavam também acidentes com espinhos de palmas e
xique-xiques. Ou com espinhos e folhas que ardem na pele, vindas de arbustos e
árvores como cansanção, urtiga e, sobretudo, favela. Eram comuns longos trechos
onde não havia trilhas ou caminho confiável, apenas veredas de bodes e cabras.
Enfrentava a vegetação no peito e na raça, atento a não perder a direção
desejada. Meu estoque de camisetas sumia em três tempos, sem falar na sensação na
irritação da pele suada sob aquele sol de rachar mamona.

De vez em quando eu cruzava com sertanejos
circulando pela região. Afinal de contas, a empresa de mineração invadia e
abria picadas na terra deles. Embora ouvisse casos de atritos pesados, eu
jamais tive problemas ao encontrá-los. Quem mais criava obstáculos eram os
latifundiários, os grandes fazendeiros, jamais os agricultores de subsistência.
Os pequenos trabalhadores rurais cumprimentavam, me chamavam para conversar,
curiosos em ver um tipo tão estranho caminhando por aquelas paragens. Eu
aproveitava para descansar e absorver um pouco da sabedoria secular deles, a
respeito do clima, terra, fauna, flora, fome, injustiça social, perseguição dos
latifundiários e abandono pelos governos, mas principalmente a perseverança que
as coisas iriam melhorar.
Também cruzava com crianças, assustadas ou
intrigadas pela minha presença. Muitas me pediam a benção. Eu invariavelmente
me atrapalhava e, sob a pressão de responder qualquer coisa, acabava falando
besteira. Houve oportunidade em que, ao pedido da benção da criança, eu
respondi: “obrigado!”. Tempos depois, levemente desconfiado de que aquela não
tinha sido a resposta esperada, devolvi diante de outra criança que me pediu a
benção: “para você também!”. Os passarinhos e as expressões embaralhadas das
crianças me sinalizaram que eu novamente não acertara.
Eventualmente as áreas a serem pesquisadas se
situavam distantes da sede do alojamento, impossível de ir, trabalhar, e voltar
no mesmo dia. Nesses casos eu e o motorista nos transferíamos à cidade mais
próxima do local, nos hospedando em hotéis ou em qualquer buraco onde fosse
possível dormir. Entre as vilas e cidades nas quais me instalei esporadicamente,
estão Curaçá, Queimadas, Santa Luz, Camandaroba. Vamos a elas.
Na margem direita do rio São Francisco, de frente
ao estado de Pernambuco, a meio caminho entre Juazeiro e Paulo Afonso, a então
pequena e pacata cidade de Curaçá logo me conquistou pelo jeito tranquilo e
acolhedor. Logo na primeira noite, quando descansávamos o esqueleto nas
cadeiras postadas na calçada em frente ao único hotel disponível, o delegado local
nos visitou, nos entrevistando, nos investigando sobre o como e os porquês. De
nada adiantou eu repetir que a empresa de mineração na qual eu trabalhava
prospectava minério de cromo. Ele insistia que eu viera ali a fim de encontrar
ouro. Mas mostrou-se simpático e agradável. Até nos convidou a conhecer a
delegacia da cidade, com instalações impecáveis, destacando as celas,
completamente vazias, sem ninguém detido. Segundo o delegado, Curaçá se
orgulhava de comemorar um ano ou mais sem ocorrências policiais. Ou eu estava
em oásis de doçura no meio do sertão nordestino ou o sujeito não prendia
ninguém.
As águas azuladas do rio São Francisco forneciam
atmosfera ainda mais bucólica à sempre limpa e bem cuidada cidadezinha de
Curaçá. Mas o calor massacrava qualquer cidadão. Mesmo à noite, as temperaturas
permaneciam acima dos 30 graus. A ausência de mosquitos permitia as janelas
abertas no quarto do hotel, o que amenizava o calor, em dois por cento no
máximo. Daí a população da cidade brotar às ruas e praças após o sol se pôr.
Cadeiras nas calçadas, passeios pela margem do rio, mergulhos nas águas
escuras, os raros bares animados. Todos queriam ficar ao ar livre durante a
noite. Eu acompanhava os moradores e circulava pela cidade.
Nessas incursões, conheci duas lindas garotas, ali
pelos dezoito ou dezenove anos de idade. Me entusiasmei e a recíproca parecia
verdadeira. Uma delas aparentemente me escolheu. Quase como namorados,
sentávamos coladinhos, aproximando nossos rostos e lábios. Mas foi exatamente
aí que o problema começou. Um problema insolúvel. O rosto doce, o olhar terno,
os cabelos soltos, os lábios carnudos, a voz suave, nada impediria o efeito
devastador do hálito dela. Hálito de coisa podre. Nem precisava ela falar ou
expirar, mas apenas abrir levemente os lábios e permitir que os interiores se
comunicassem com os exteriores. Situação catastrófica, insuportável. Sabia que
não aguentaria por muito tempo. Deixei a coisa esfriar, me afastando
gradualmente, sem elas perceberem o motivo. Inevitável. Nunca nutri paixões por
bueiros.

Outro destino de trabalho, Queimadas, se situava no
sul do sertão de Canudos. Extremamente limpa, bem arrumada, a cidade de cerca
de dez mil habitantes contava com as árvores nas ruas e praças desgraçadamente
podadas geometricamente, mania absurda dos interiores brasileiros. Era a
principal produtora de derivados de sisal do Brasil, sobretudo cordas e afins.
E também o município recordista em manetas. Sim, pois as máquinas de
beneficiamento da planta, desprovidas de normas de segurança, agarravam as mãos
e braços dos trabalhadores. Bastava cochilarem ou permitirem segundos de
desatenção, para perderem partes ou o todo dos membros superiores. Os
fazendeiros e proprietários do maquinário pouco se lixavam para a carnificina.
A impunidade e o descumprimento dos direitos trabalhistas lhes garantiam a
tranquilidade de que nada aconteceria e os lucros continuariam.
Eu e o motorista nos hospedávamos em hotelzinho
razoável no centro de Queimadas, cuja proprietária, orgulhosa com minha
presença, preparava saborosos ensopados de tatu e de rim de porco. Pouco
convivi com os moradores da cidade, mais retraídos e em casa à noite. As raras
garotas vistosas não passaram de alucinações passageiras. Eu permanecia, então,
na sacada da frente do hotel em meio aos outros hóspedes, excelentes contadores
de histórias, invariavelmente apimentadas de machismos e valentias difíceis de
engolir. Vez ou outra aparecia o ancião da cidade, com mais de oitenta anos. Ao
contrário das lorotas dos demais, ele convencia com relatos de fatos da época
de Lampião, de quem foi bem chegado e com quem estabeleceu laços comerciais e
de amizade. Independente de favoráveis ou não ao capitão do sertão, Lampião
inspirava a todos os presentes respeito e admiração, quase veneração divina.
Ainda mais ao sul que Queimadas, Santa Luz, cidade
pouco maior, mais movimentada e praticamente fora da região sertaneja. Por
vezes permaneci dias ali avaliando supostas ocorrências de cromita e também
mapear áreas solicitadas para pesquisa mineral.
Acabei me relacionando com uma garota de Santa Luz.
Sempre namorávamos quando eu voltava à cidade. Mesmo depois de eu deixar a
empresa e me mudar da Bahia, o caso rendeu cartas e mais cartas, promessas de
reencontros futuros, de formalizações da parte dela, leia-se aí
noivado ou algo mais grave. O tempo se encarregou de instigar reflexões e fazer
com que, aos poucos, caíssemos na real, esquecendo os planos mirabolantes. E esquecendo
um do outro.
Camandaroba era localidade mais próxima da sede do
alojamento, mas pela grande quantidade de áreas de pesquisa, optamos por
montarmos base na vila, pertencente a outro município. Contava com açude
artificial, cultivo de peixes e nada mais de promissor. Além da rua principal,
de terra, que também servia de eixo da barragem e de estrada entre Itiúba e
Cansanção, Camandaroba revelava esparsas construções de madeira, muita poeira,
miséria e abandono, sujeira atacada pelos urubus. Embora a melhor do vilarejo,
a pensão na qual costumava ficar apavorava em todos os aspectos. Instalações
precárias e sujas, banheiro coletivo repugnante, quartos em péssimo estado. A
comida, repetitiva e mal preparada pela dona, mais chegada em intrigas e
fofocas pesadas, tirava a fome de qualquer cidadão. Um danado de pedaço de
bode, insistente como só ele, reaparecia a cada noite, no mesmo formato e
posição, de aspecto nada convidativo. Ninguém tocava no tal pedaço de bode. O
bode recorrente. E me obrigava a matar a fome de maneiras alternativas.
O marido da dona da pensão decrépita, idoso e bem
mais velho que ela, sofria nas mãos da megera, inerte, inválido na cadeira de
rodas. Ela o provocava diante dos homens, humilhando-o pelo fato de ele nada
fazer, especialmente quanto ao sexo. De aparência física como a própria pensão,
a dita cuja não conseguia nada com ninguém, enfurecendo-a ainda mais e atirando-a
com mais ódio ao marido. Adorava cantarolar versos de canção de sucesso de
Amado Batista, repetindo o refrão que ansiava voltar ao passado, aumentando a
voz da cantoria, cutucando o pobre coitado por sobre o pijama velho e sujo.
Naquele ano, Amado Batista explodia em vendagens de discos, enchia os bolsos de
dinheiro, comprava fazendas e aviões, enquanto os fãs não se cansavam de ouvir
letras chorosas e trágicas como na intitulada
Amor Perfeito.
OS COLEGAS DE TRABALHO
Intercalado com os trabalhos de campo, eu
permanecia no alojamento analisando as informações coletadas, elaborando mapas
e relatórios no escritório, projetando novas explorações, ao lado dos colegas
de trabalho. Nesses momentos travava maior conhecimento com o contador, o
desenhista e, principalmente e infelizmente, com o gerente e geólogo.

Cearense do interior, o tal gerente exibia no
aspecto físico, de ideias, comportamento e maneiras de se relacionar com os
demais funcionários, o estereótipo do machista, autoritário, grosseiro,
arrivista. Evitávamos confrontos abertos, mas jamais me deixei levar, como os
demais funcionários, pela submissão e veneração às atitudes dele. Obedecia, é
verdade, afinal era funcionário da empresa, mas não admitia os excessos de
capataz do individuo. Fanático por caçadas, sempre acompanhadas de espingardas,
cartuchos, garrafas de bebidas alcoólicas e dos inseparáveis cães perdigueiro,
eu o batizara de perdigueiro frustrado. Somente com estômago forte, eu não
vomitava nas manhãs de segunda-feira, ao ouvir as estórias monótonas das
caçadas durante os finais de semana, contadas nos mínimos detalhes e recheadas
de rompantes de grande sujeito. Tratava melhor aos cães perdigueiros que a
mulher e a filha pequena. Presenciei tais cenas ao passar por Juazeiro, cidade
onde moravam. Invariavelmente embriagado, ele enxotava violentamente as duas da
sala, vociferando que ali não era lugar de mulher, obrigando-as a se refugiarem
na cozinha ou nos quartos.
O desenhista, morador da cidade de Campo Formoso, puxava
escancaradamente o saco do chefe nos assuntos de caçada, nas gargalhadas
forçadas diante das piadas do chefe, até nos gostos e opiniões sobre tudo na
frente do chefe. Na ausência do capo, no entanto, o desenhista posava de independente,
dono das próprias ideias, até criticando certas posições da empresa. Se orgulhava
de entender de diversos assuntos, inclusive aqueles com os quais jamais tomara
contato. Mas ao ser questionado, pigarreava tentando retomar desesperadamente o
fio da meada das balelas. Não era antipático, nem tampouco chato ou
inconveniente, apenas exigia a cautela de todos no que e como falar. Como a
maioria, fumava demais e se embebedava aos fins de semana. Como a maioria,
raramente comia verduras ou frutas. Como a maioria, se entupia de café e
adorava comida gordurosa pela manhã. Como a maioria, não conseguia entender
porque vivia sob uns constantes sintomas de azia e demais problemas estomacais.
E se regozijava durante as refeições assim que eu lhe oferecia a travessa de
salada: “Não sou coelho para comer folha!”. Eu também ria, transferindo ao meu
prato todas as verduras frescas.
Caso a parte era o contador, funcionário natural de
Senhor do Bonfim. Alcoólatra que se continha sei lá como durante a semana,
fumante inveterado, batia os beiços de modo intermitente, feito epilético,
quando se debruçava sobre contas e notas fiscais, ao lado da calculadora
eletrônica. No entanto, tornava-se boa companhia na ausência do perdigueiro
frustrado. Soltava-se, ria, contava boas estórias. Naquela época o pagamento
era feito em dinheiro vivo, dentro do envelope, e ele o entregava pessoalmente
a cada funcionário. De vez em quando o contador se atrapalhava nas contas. Não
conseguia fechá-las e se descabelava. Eu tentava auxiliá-lo, lendo os valores
ou digitando-os na calculadora. Mesmo quando o total dava certo, ele mantinha-se
encafifado e, sozinho, recomeçava a recontagem pela enésima vez. E os beiços
chacoalhavam ainda mais.
Foi na presença dele, quando o perdigueiro
frustrado encontrava-se de férias, que um funcionário apareceu no escritório e
me pediu para folgar no dia seguinte. Perguntei a razão e o homem respondeu:
“Meu renjo quebrou a cantalera”. Pedi em vão socorro com os olhos ao contador.
Sem entender ou saber como proceder, eu autorizei a folga. Assim que o
trabalhador saiu, me virei e solicitei a tradução ao colega. Rindo aos soluços
me disse tranquilamente: “Ele quis dizer que o genro dele quebrou o ombro”.
O motivo mais comum do pedido de folga era, no
entanto, para “tirar o piso”. O contador, ou quem mais estivesse presente no
momento, comentava, às gargalhadas, somente para me provocar, logo após o
funcionário deixar a sala: “Coitado, ganha pouco, mal dá para comer e todo o
ano é a mesma coisa, retira o piso da casa e o substitui por um novo”. Ainda riu
muito antes de me explicar que os funcionários precisavam ir à cidade para
“retirar o PIS”.
Nem sempre eu conseguia evitar os encontros com o
contador em Senhor do Bonfim, aos fins de semana. Invariavelmente embriagado e
com os olhos úmidos e avermelhados, ele agia como legítimo bêbado chato.
Abraçava-me na rua, insistia para que eu sentasse e bebesse com ele, exibia
olhar perdido, jurava ser meu amigo do peito, perguntava se eu era amigo dele
tanto quanto ele era meu, falava com o rosto bem próximo, repetia dezenas de
vezes as virtudes da amizade, especialmente da nossa. Não adiantava eu avisar
que ele já contara essa ou aquela estória. O alerta funcionava como combustível
e ele a repetia novamente. E a cada repetição da estória, se aproximava mais,
me abraçava forte e bradava “me escute, me escute, você é meu amigo, você é meu
amigo, me escute, me escute...”. Me libertava daquela tortura somente quando
ele ia ao banheiro ou se dirigia ao balcão do bar para pedir outra. Eu escapava
dali sem me despedir, aliviado, virando a esquina rapidamente. Na
segunda-feira, ao retornarmos ao alojamento da caatinga, ele me tratava
normalmente, sem quaisquer referências ao acontecido. Certamente não se
lembrava de absolutamente nada do que acontecera.