Itacambira anoiteceu de ressaca pela movimentação da feira
mensal. Após a partida dos ônibus e demais veículos levando de volta a
população rural, as ruas ficaram quietas. O comércio baixou as portas mais
cedo. O restaurante costumeiro não serviu jantar. A lotação durante todo o dia
pelo povo da roça não permitiu um segundo sequer de descanso ao casal. A
cansada Itacambira dormia ainda mais cedo naquela noite.
Amanheceu claro, com céu azul e sol forte, sem a
tradicional cerração cobrindo as montanhas e umedecendo o ar. Pendurei tudo quanto
era roupa, molhada ou não, para expor ao sol.
Repeti a subida a Serra Resplandecente, até o cume das
antenas, desta vez com sol, céu azul, visibilidade total.
Subindo o asfalto, antes da primeira curva ascendente,
notei a aglomeração na beira da rodovia. Meia hora antes, um caminhão
procedente de Londrina, carregado de móveis e utensílios domésticos, perdeu
controle, saiu da pista e capotou barranco abaixo. Sei lá como conseguiu parar
a vinte metros da estrada, interrompendo o voo. O pai, preso nas ferragens, foi
retirado com pé-de-cabra pelos moradores, antes que os bombeiros, vindos da
distante Montes Claros, prestassem socorro adequado. Ele sofreu escoriações e
fraturou a perna. O filho, sentado no banco do carona, saiu ileso.
Ao contrário da primeira oportunidade, aquele dia brilhante
e resplandecente como o nome da Serra me permitiu apreciar nitidamente a
paisagem, por trezentos e sessenta graus. Itacambira, as serras próximas e
distantes, igualmente estupendas, os vales, as nascentes do rio Itacambiruçu,
as estradas de chão, os horizontes esverdeados e azulados.
No topo, me sentei numa pedra projetada sobre a escarpa. Relaxei,
contemplei aquela maravilha da natureza, observei pássaros e lagartos. O mocó
exibicionista do outro dia não deu as caras. Minha mente vagava sem freios pela
imaginação sem limites.
Após a missa noturna, parte dos moradores montaram
barracas atrás da igreja como parte das novenas de Santo Antônio. Os fieis
vendiam vaca atolada, beiju, canjica, chá de amendoim. Músicas típicas juninas
gravadas animavam os frequentadores. Acenderam fogueira, leiloaram prendas. Os
leiloeiros circulavam entre os moradores, gritando todos ao mesmo tempo a
prenda e o preço alcançado até então. Teciam brincadeiras de duplo sentido com
objetos de formatos e significados maliciosos, incitando lances mais altos
entre os interessados. Todas as prendas foram arrematadas. Nada sobrou sobre a
mesa.
Tracei duas saborosas vacas atoladas e encerrei com copo
de chá de amendoim. Os itens eram vendidos invariavelmente pelo preço de um
real.
Depois enrolei em boteco da pracinha ao lado de conhecidos.
Todos ali se enfureciam diante das implicâncias do novo padre na cidade que
queria vetar isso e aquilo durante as futuras festas juninas. Os assuntos até
podiam migrar para outros temas, mas retornavam logo em seguida com mais malhações
ao padre censor.
Adormeci mirando o céu absurdamente estrelado pelos amplos
vidros do janelão do quarto.
Almocei galinha caipira, arroz, feijão, legumes, salada,
na própria pousada, tudo preparado e servido pelo dono e a filha. Devorei com
gosto, saciei a fome, conversei descontraidamente.
Me despedi calorosamente de todos e embarquei para Montes
Claros. A rodovia percorreu todo o alto da serra ao redor do vale de Itacambira,
permitindo observá-lo durante bastante tempo. E novamente os vinte quilômetros do
deserto verde dos eucaliptos, cuja monocultura tinha o cinismo de chamar aquele
crime ambiental de reflorestamento. E de colocar cartazes ao longo da plantação
da praga, em ambos os lados da estrada, alardeando a defesa da natureza.
Mais próximo à cidade de Juramento, as barrigudas
esplendidamente floridas forneciam tons lilases e vivos em meio ao verde pálido
do cerrado.
Apesar do terminal rodoviário organizado e do horário marcado
das partidas, o ônibus embarcava e desembarcava por toda a cidade de Montes
Claros. Ocorriam várias paradas pelas ruas, pontos, ou no terminal de apoio da
própria empresa, se tornando assim um segundo, terceiro, quarto, quinto ponto
de partidas e chegadas das linhas. Os ônibus percorriam ruas estreitas,
entupindo o trânsito, poluindo a cidade, atrasando o trajeto.
No trecho entre Montes Claros e Salinas, muitos
passageiros incorporaram um caminhão baú, sendo literalmente rastreados. Eram celulares
de pessoas diferentes tocando a todo instante. E vinham as respostas padrão: “Estou
no ônibus”, “Saí de Montes Claros agora”, “Devo chegar em Salinas tal hora”, “O
ônibus está entrando em Francisco Sá agora”, “O ônibus está subindo a serra”,
“Daqui a uma hora chego em Salinas”. Será que eram passageiros importantíssimos,
carregando cargas supersecretas, numa urgência urgentíssima, ou, o mais
provável, apenas deslumbrados com os brinquedinhos eletrônicos, adorando serem
rastreados?
Desembarquei no meio da tarde na tórrida Araçuaí,
verdadeiro contraste térmico com Botumirim e Itacambira. Me hospedei em quarto com
banheiro sem cortinas na janela de vidro transparente. Os vizinhos mais altos e
os hóspedes vindos do estacionamento se deliciariam com os espetáculos
gratuitos durante meus banhos.
Próximo ao restaurante onde jantei em mesas ao ar livre, eu
notei um imóvel de dois andares, com controle de portaria, muro alto, cerca
elétrica, arame farpado em espiral, entre outros itens de segurança máxima, no
melhor estilo de penitenciária. O garçom comentou que já lhe questionaram outras
vezes se ali era um presídio. Mas era apenas um hospital. O controle de
segurança de última geração se devia aos constantes roubos de aparelhos,
remédios, equipamentos, ou do que estivesse pela frente. Roubos para sustentar a
dependência em drogas, verdadeira epidemia em Araçuaí. Reparei em outros
imóveis a mesma paranoia de segurança, muros altos, cerca elétrica, arame
farpado em espiral. Vi também menores pelas ruas ou próximos a estabelecimentos
comerciais pedindo esmolas. Ali não era capital ou cidade grande, mas Araçuaí,
com menos de 40 mil habitantes. Muita polícia pelas ruas, mas nada soube sobre
o combate ao tráfico de drogas, sobretudo aos grandes fornecedores.
Não era minha primeira vez em Araçuaí. Também não era a
primeira vez que eu denunciava as injustiças sociais da cidade em relatos neste
blog. E proliferavam as ONGs pela região, recebendo dinheiro de não sei quais empresas
e servindo a não sei quem.
O ônibus para Itaobim passou pela aconchegante cidade de Itinga,
na margem esquerda do rio Jequitinhonha.
Na caatinga prevalecia a vegetação invariavelmente
ressecada, exceto nos fundos de vales, mais úmidos, esverdeados, cultivados. A
despeito disso, no meio do cinza, apareciam árvores floridas, escandalosamente
coloridas, lilás, rosa, amarela, realçando-as pelo escandaloso contraste.
Na beira da estrada, diversas barracas de palha vendiam
objetos artesanais de cerâmica, a maioria de utilidade doméstica. Tudo muito
parecido, feitos em série, espalhafatosos, com acabamentos e pinturas
berrantes. Aquilo definitivamente não representava a arte popular, livre,
criativa, tão marcante do vale do Jequitinhonha.
Na terrível cidade de Itaobim, na beira da também terrível
BR-116, esperei dentro do ponto de apoio da empresa de transporte. Local sujo,
com bar sujo, banheiro sujo e pago. Aliviei a bexiga atrás de muro mais
afastado.
No segundo ônibus, a rodovia acompanhou a margem direita
do rio Jequitinhonha, entre serras e serrotes, algumas exibindo paredões
rochosos, tendo aos pés casas precárias e esparsas. Pouco ou nada plantado,
vegetação ressecada. Um acampamento de trabalhadores rurais sem terra aguardava
havia anos por terra para plantar.
Desci em Jequitinhonha e caminhei até o esplêndido hotel na
margem do rio. Da sacada do quarto, vista estupenda das águas do Jequitinhonha
serpenteando entre as pedras, gramados e bancos de areia. Bodes e cabras
pastavam nos trechos secos. Raros pescadores arriscavam alguma coisa. Homens
carregavam canoas com areia extraída da várzea seca. Montanhas mais esverdeadas
emolduravam a margem oposta. A balsa à montante transportava passageiros,
veículos leves e pesados, de quando em vez. Pássaros em revoadas cantavam.
Moradores circulavam calmamente. Beleza e tranquilidade.
A parte alta do centro da cidade guardava concentração de
casario antigo, datado do começo do século XX. Imponentes mansões da elite
local circundavam a praça inclinada, em frente à igreja matriz modernosa,
pesadona, sem cara de nada. Um dos casarões que abrigou membros do coronelismo do
norte de Minas Gerais foi reaproveitado, sabe-se lá em quais condições, para
sedear a prefeitura do município.
Apesar do começo da noite, as ruas estavam praticamente
vazias, silenciosas, fascinantes para andar, sentir, observar.
Acompanhei a margem do rio, passando por bairros
precários, o ponto da travessia da balsa, então em manutenção temporária.
Pedestres, bicicletas, motos, cruzavam o rio por passarela estreita, rio acima,
a montante das obras da futura ponte de concreto.
Atravessei a passarela tomando todo cuidado nos momentos
em que vinham motos nos dois sentidos. Eu tinha que me afastar, me segurando
nos corrimões baixos, batendo na altura de meus joelhos. O nível baixo das
águas permitia o aparecimento de ilhas de pedra, com ou sem vegetação arbustiva.
Corredeiras agitavam o curso e provocavam sons agradáveis de água em movimento.
Na margem oposta, um punhado de casas simples, ao lado de
roças básicas, e a estrada de chão serra acima, rumo ao povoado de Brejão, onde
brilhavam plantações variadas nos assentamentos de pequenos produtores rurais,
conforme depoimento de um deles que aguardava carona no fim da passarela. Mais
adiante ficava a vila de Estiva e, no final da estradinha, a cidade de Pedra
Azul.
Durante o almoço no restaurante anexo ao hotel, tive que
ouvir o arrendatário defender a execução de jovens pela polícia militar. Refutei
com argumentos contrários às matanças, obviamente. Embora não concordando comigo,
hesitou em manter os dele. Menos mal.
Ao entardecer me deslumbrei diante da vista da sacada do
quarto do hotel, valorizada pelo brilho do sol realçando cores e detalhes. Os
pássaros em revoadas ao entardecer esbarravam nas águas do rio, cantando, na
busca de comida, antes de se entocarem, em bandos, nos abrigos noturnos.
Se o bar e restaurante anexo ao hotel não se animava, tomei
a iniciativa. Encostado no balcão, entre goles da divina cachaça regional, eu puxei
assunto com quem passava por ali. Qualquer tema valia desde que descontraísse e
quebrasse o ritmo sonolento de pegar comida, pesar, sentar à mesa, comer com os
olhares bovinos na televisão, levantar, pagar, subir ao quarto do hotel para se
idiotizar mais horas em frente à televisão.
Até que surgiram companhias para prosear. O funcionário
antigo da Cemig descreveu os horrores sanitários do norte de Minas Gerais até a
década de 1980, então infestada de doenças tropicais. Entre elas, a doença de
Chagas, cujo transmissor, o barbeiro, brotava indiscriminadamente nas moradias,
pensões, comércio, construções em geral. Nos temas de comida e alimentação,
todos concordaram que o restaurante precisava urgentemente variar aquelas
opções previsíveis, triviais, insípidas. Insistiam que faltava a galinha
caipira, ao molho pardo ou não, peixes ensopados, assados ou fritos, diferentes
preparos nas carnes, legumes, cereais, verduras, capricho nos temperos, enfim, culinária
mais típica da região. Um dos colegas ressaltou, com propriedade, que
precisávamos prestigiar as comidas e bebidas regionais. Certíssimo. E para por
em prática a opinião tão calorosamente emitida, o indivíduo pediu, não a
cachaça artesanal, mas uísque, e dos mais vagabundos, provavelmente feitos na
base de álcool e corante. Nada com unir o discurso à prática!
Caminhei sob a temperatura amena da noite. Nada aberto nos
arredores do centro da cidade. E aquela calma noturna era bem-vinda demais da
conta.
Atravessei pela manhã o Jequitinhonha pela passarela e
encarei a estradinha de chão, em bom estado, encascalhada, serra acima. Poucos
veículos, leves e pesados, transitavam por ali. A árdua subida jamais dava
tréguas.
Após as casas esparsas da parte baixa, cercadas de roças
em zona abundante de água, de interessante nos altos, a panorâmica de
Jequitinhonha, da extensão do vale, das montanhas mais ao sul, da BR-367, das demais
estradas. A serra ao lado, coberta integralmente pela vegetação original, compunha
a Reserva Biológica da Mata Escura.
No ramal que levava ao cercado contendo várias antenas, vira-latas
metidos a cães de guarda me receberam com hostilidade. Latiam histericamente,
mas não passou disso.
Entrei em trilha sinuosa morro abaixo, do qual se
descortinava o vale do Jequitinhonha à montante da cidade. A trilha descia
abruptamente aos pés dos paredões rochosos, à zona coberta por mata fechada.
A tarde avançava quando me sentei no boteco ao lado da
balsa para matar a sede. Quatro mulheres enxugavam garrafas de cerveja e
lançavam olhares profissionais aos ocupantes do recinto. O ambiente suspeito fazia
jus ao entorno.
Tomei sorvete e uma jarra de suco de goiaba numa
lanchonete. E me considerei almoçado. Fome, só mais tarde.
continua...
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