Na volta a Serranópolis de Minas, no veículo do prestativo
agente ambiental a serviço no parque estadual da Serra Nova, debatemos as
queimadas criminosas, a criação de gado, a impunidade às agressões ambientais.
E o processo de implantação e planejamento socioambiental, ambos em andamento
naquela unidade de conservação de quase cinquenta mil hectares, mas com apenas
doze funcionários.
Antes do jantar, tive tempo de degustar uma dose da
cachaça artesanal no comércio ao lado da pensão, cujo dono vestia peruca
pretíssima, inconfundível a quilômetros de distância. Perucas tão
escandalosamente óbvias somente as das judias fundamentalistas do bairro de
Higienópolis em São Paulo. Degustei a segunda dose da branquinha no próprio
restaurante da praça, como antessala ao lauto jantar. Pedia um ovo frito e
vinham dois ovos fritos. Pedia dois pedaços de carne e vinham cinco. E assim
por diante. Acho que a dona me achou fraco e raquítico.
Na mesa do restaurante, conversei com a jovem sentada à
minha frente. Magérrima, cheia de bexigas pelo rosto, deprimida, vestindo saia comprida
e blusa de mangas longas em plena noite quente. Sofria intermináveis dores de
cabeça. Era escrava de uma dessas empresas lucrativas em cima da fé dos outros,
mais conhecidas como evangélicas. Ela não falava coisa com coisa, se esquivava
de minhas perguntas, olhava obsessivamente para os lados, sempre com expressão
desconfiada. Talvez aterrorizada com a possível visita do capeta. Mais uma
ovelhinha de rebanho em crise.
Outra ovelha de rebanho era um operador de máquina de
terraplanagem. Sempre vestindo camisetas com dizeres fundamentalistas, o
indivíduo se recusava a conversar com a gentalha, grupo ao qual me incluiu tão
logo notou eu pedindo pinga antes do jantar. Exibindo expressão de pedra, o tal
vegetava escondido atrás de textos de ficção que prefere denominar de sagrados.
E, para alegria geral dos trabalhadores rurais, animais,
habitantes em geral da região, choveu durante a noite toda. Embora sem
tempestades ou ventos ameaçadores, a água caiu constantemente. Amanheceu
nublado, fresco, entre garoas ocasionais. As nuvens cobriam a extensão superior
da Serra do Talhado, deixando tudo cinzento e úmido.
Embarquei em jejum no ônibus para Porteirinha. Desci na
rodoviária a tempo de pegar o segundo ônibus para Montes Claros. Só na parada em
Janaúba comprei algo para beber e ajudar a empurrar as bolachas secas.
Desembarquei na rodoviária de Montes Claros depois de
ultrapassar a lentidão do trânsito central da cidade. Esperei por mais de duas
horas e meia a partida do ônibus para Botumirim.
Depois de cruzar lentamente Montes Claros, pegar mais
passageiros em ponto ainda na zona urbana, finalmente o veículo entrou na perigosa
rodovia BR-251, em trecho de serra, sinuosa e estreita, passando por Francisco
Sá. O ônibus acessou estrada local para Botumirim, os primeiros vinte
quilômetros de chão, margeados pela monocultura de eucalipto, o deserto verde
espantando a flora e a fauna, sugando e secando nascentes e o lençol freático. As
serras rochosas apareceram mais próximas à chegada, já em trecho asfaltado
recentemente. A estrada passou por Adão Colares, no alto do Espinhaço,
justamente no momento em que o por do sol sanguinolento dava espetáculos no
horizonte.
Entre conversas divertidas com os poucos passageiros e o
cobrador, o trajeto até que passou rápido. Uma senhora embriagada, o normal
dela segundo a maioria, discursava frases sem nexo, alternadas com juras de ter
parado de beber. Uns davam linha ao palavrório, outros riam ou olhavam a paisagem
na janela.
Desembarquei no centro elevado de Botumirim ao anoitecer,
praticamente em frente ao hotel, cuja sacada do quarto dava face ao calçadão pobre
de árvores e ao pequeno palco do lado direito.
Sem banho, saí para jantar vestindo a malha a fim de me
proteger do frio serrano. E imediatamente concluí que o cobertor grosso e o
edredom do quarto não eram peças de decoração. Mesmo com o frio, grupos de
amigos, se reuniam em bares ou ao ar livre para prosear, beber umas e outras,
passar o tempo.
Terminei o livro Feliz
Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. E retirei do fundo da mochila o próximo
da lista, História da Amazônia, de
Márcio Souza.
Amanheceu nublado com a neblina cobrindo a serra. O povo
agasalhado se encolhia pelas ruas. Mas a visão dos paredões rochosos e da
crista das serras, após a dissipação da cerração, me animou para explorações a
pé.
Subi a rua do hotel, passei em frente à igreja erguida no
alto da colina, em frente à praça minúscula e sem graça. Logo o calçamento deu
lugar à estradinha de terra. O caminho era circundado por imponentes serras
escarpadas, cortadas por vales profundos e férteis.
Em pouco tempo avistei a cachoeira no fundo do vale, de
onde corriam fios esbranquiçados da água pela parede rochosa. E cachorros,
muitos cachorros, vindos de casas mais afastadas, atacaram aos montes, latindo,
rosnando, uivando histericamente. Atirei pedras no mais assanhado. Os danados
se afastaram um pouco, mantendo os latidos, rosnados, uivos, sem parar um
segundo. Dei de frente a cerca com cancela flexível, de arame e paus
horizontais. Não avistei um ser humano sequer para confirmar o caminho ou me
liberar o acesso.
Peguei ramal morro acima. O caminho subiu bem, fornecendo
vista privilegiada da cidade lá embaixo e das montanhas ao redor. Lá no alto,
sob o vento frio, a estrada mergulhou rumo ao vale de São Domingos. Vale fértil,
belíssimo, ocupado por casinhas esparsas, plantações, palmeiras e coqueiros,
protegido de ambos os lados pelas escarpas acinzentadas da Serra Geral. De ser
humano, apenas um cavaleiro com quem cruzei no sentido oposto.
Notei as pernas das calças cheias de pontinhos claros em
contraste com o escuro do tecido. Grãos de areia, carrapichos, ou outro tipo de
vegetação aderente? Mas areia, carrapicho ou afins, não se movimentam sozinhos.
Eram dezenas, centenas de carrapatos. Chacoalhei, bati com as mãos, esfreguei. Retirei os restantes e os esmaguei com as unhas, pelo menos os que consegui
identificar.
À tarde, andei para os lados do cemitério de Botumirim, de
onde saía estrada em direção ao lago artificial formado pelas águas do rio
Jequitinhonha para a hidrelétrica de Irapé. No caminho cruzei com mais um
daqueles deploráveis conjuntos habitacionais, chamados cinicamente de populares.
Não passavam de amontoado de cubículos claustrofóbicos colados uns nos outros,
com janelas e portas minúsculas. Programas habitacionais que viram moeda eleitoral,
mas purgatórios para as vítimas que neles eram obrigados a sobreviver.
Sentei em frente ao pesado balcão da venda ao lado do
hotel no final da tarde para prosear e bebericar. Branquinha, artesanal,
descansada em vasilhames neutros, a saborosa cachaça descia macia, sem queimar.
O comerciante comprara mil e quinhentos litros daquele néctar divino,
compartilhando-a com os mais chegados, eu entre eles. O prazer de apreciá-la
crescia junto às conversas sobre tudo e todos, levadas descontraidamente, sem
pressa, sem objetivo, sem intenções. Até o vereador apareceu, embora os temas
políticos raramente viessem à baila. Apenas me respondeu que havia somente duas
sessões por mês na câmara de vereadores de Botumirim.
Enquanto o papo e os goles corriam soltos, clientes
picados apareciam no balcão, procurando isso ou aquilo. A maioria pendurava a
conta nas famosas cadernetas, no caso em cadernos em espiral. O comerciante garantiu
que eles quitariam as dívidas em um, dois, três, seis meses, ou mais.
Preocupações? Nem de longe! E enchia o copo, pois a garganta secava com a
conversa emendada.
Circulei levemente pelas ruas quase vazias da cidade. Um
ou outro bar com meia dúzia de fregueses. E o frio apertando.
Amanheceu sob um
céu baixo, cinzento, garoando, molhando ruas e calçadas. As montanhas se
escondiam parcialmente pela neblina.
Mas nesse frio úmido do amanhecer, quem se pôs a trabalhar
primeiro nas ruas daquela cidade mineira? Os paraibanos. O grupo que veio de
caminhão estendeu os produtos à venda pela calçada, bancadas, ou pendurados na
própria carroceria do caminhão. E todos de bermudas e camiseta, parecendo não
sentir o frio matinal da Serra Geral.
Parti para explorar os altos da serra. Na curva elevada da
estradinha de terra, peguei a trilha logo após a cancela com mata-burro.
Antes de começar a subida intensa, centenas de minúsculos
carrapatos de cor clara saltaram para as pernas de minhas calças, na altura dos
tornozelos. Novamente bati, esfreguei, expulsei pontinha por pontinha,
semelhante a grãos de areia. Uns conseguiram me driblar, fazendo festa na minha
pele, entre coceiras e pequenas feridas.
A trilha passou sob uma das escarpas rochosas da serra e
começou a subir sem dó nem piedade. Margeou lapa estreita e profunda, com areia
revolvida nas imediações. À medida que ascendia no relevo, o vale de São
Domingos se descortinava à esquerda, em visão longitudinal, diversa do dia
anterior.
Alcancei o primeiro patamar, sobre solo arenoso entre
blocos de rocha, coberto por vegetação de altitude. A trilha ladeou nascente
fresca com água pingando dentro de gruta esverdeada e escura. Em nova subida,
atingi o patamar superior da serra, a mesma que servia de paredão ao vale do
São Domingos.
O vento e o frio castigavam. A trilha se tornou vereda
estreita. Surgiram inúmeros olhos d’água, minadouros. Flores minúsculas de
coloração variada brotavam esparsamente, ao lado de formações rochosas
inusitadas, mandacarus, areais, vegetação arbustiva em leves aclives.
Me deparei com amplidão desolada, justamente o início das infinitas
campinas verdejantes. Havia menos rochas, menos vegetação de porte, apenas o
verde chapado a perder de vista.
O frio, o vento, a garoa intermitente, provocavam perdas
de temperatura no corpo. Sem maiores paradas para não esfriar ainda mais, voltei
pelo mesmo caminho da ida, atento para não me perder em campo repleto de
veredas de animais. Nos areais conferia o rumo pelas marcas da minha bota em sentido
contrário. Redobrei a atenção nos trechos mais sujeitos a carrapatos.
Encontrei vaqueiros montados a cavalo, indo ou vindo da
conferência de rebanhos soltos. Faziam questão de desmontar e me cumprimentar
com apertos de mão e prosa ligeira.
As roupas que eu lavara completavam quarenta e oito horas
ainda úmidas, mesmo com o solzinho tímido das tardes, em cujos momentos eu as
pendurava na grade da janela do quarto.
Embora formada por ruazinhas estreitas em ladeiras, a
igreja Matriz no topo da colina, rodeada de serras escarpadas e imponentes, a
cidadezinha de Botumirim, com mais de sete mil habitantes, carecia de beleza,
charme, interesse arquitetônico. A maioria das construções, moderna e sem
personalidade. Raras as antigas e atraentes, muitas delas desfiguradas. Não
oferecia sequer uma praça decente e digna do nome. Os pontos de lazer mostravam
falta de carinho e desprezo das administrações públicas. A população,
aparentemente apática e indiferente. Ainda bem que abundavam hospitalidade,
acolhimento, calor humano, simpatia do povo.
O armazém ao lado do hotel era legítimo representante das
antigas casas comerciais de décadas ou séculos atrás. Ali se encontrava de
tudo. Comida fresca ou industrializada, artigos de quitanda, bebidas,
alcoólicas ou não, laticínios refrigerados, artigos eletrônicos e elétricos,
ferramentas, itens de papelaria, farmácia, bicicletas, sapataria e afins,
roupas e tecidos, armarinho, miudezas, entre outros milhares de opções. Nem sei
como se controlava o estoque, a validade dos artigos perecíveis, a localização
nas dezenas de extensas e escuras prateleiras, os preços. E com atendimento
exclusivamente no balcão, no estilo das antigas vendas mesmo.
Mas, porém, contudo, todavia, a cachaça artesanal,
purinha, branquinha, vinda do fundo do armazém, bebericada infalivelmente após o
anoitecer, configurava ritual imperdível, pela degustação daquela preciosidade,
pelas companhias, pela prosa solta e descompromissada. A depender de quem parava
em frente ao balcão pesado, os temas variavam vertiginosamente. Entre tantos,
os recentes tremores de terra em Montes Claros, combate às saúvas nas
monoculturas de eucalipto, piadas e gozações, como preparar mocó ensopado,
origem, distinções e qualidade das cachaças regionais, passeios ao Rio do
Peixe, a hidrelétrica de Irapé, costumes de ontem e de hoje.
Amanheceu ainda mais nublado, frio e úmido. Não se via
nada das montanhas, inteiramente cobertas pela neblina compacta. Ruas e
calçadas, molhadas e desertas, apontavam para um domingo morto, triste, soturno.
Vi a manhã passar dentro do quarto, sob o cobertor, lendo capítulos
da História da Amazônia, de Márcio
Souza. Alternava os registros escritos de minhas sensações e impressões com
olhadelas àquela paisagem que lembrou a vila de Paranapiacaba, no trecho
paulista da Serra do Mar. Neblina, umidade, frio, ruas desertas, cortadas por
uma ou duas pessoas apressadas, recurvadas, encolhidas, às vezes cochichando
frases curtas, fugindo da garoa fina que teimava em impregnar tudo e todos.
À tarde, circulei sem pretensões pelas ladeiras da cidade.
Ainda menos gente que durante a manhã. E voltou a chover. Por mais que me
esforçasse, não reprimi o sono debaixo do cobertor quentinho da cama do hotel. E
a tarde trouxe mais neblina baixa, cobrindo ruas, casas, montanhas.
Absolutamente ninguém pelas ruas. Muito menos eu.
continua...
Poxa, o sr sempre com roteiros legais não?Aposto que deve usar ônibus em viagens e a minha dica é http://www.autoviacoes.com.br. Continue as aventuras ! Airton Luppi
ResponderExcluirOi Airton, obrigado pela visita e pelo comentário.
ResponderExcluirRaramente viajo de carro ou avião. Prefiro os ônibus, os trens, barcos e navios regulares pelos rios e mares, caminhonetes, etc. Assim mantenho contato com a população e aprendo um pouquinho mais sobre as respectivas culturas.
Valeu a dica.
Aguardo seus comentários.
Abraços!
Parabéns pelos textos! Especialmente pelo trecho em que relata seus dias em Botumirim, minha cidade natal. Você exprimiu com clareza e, ao mesmo tempo, com bela poesia, as características do povo e da geografia da cidade. Serras e rios fascinantes. Povo acolhedor, apesar de ser tão maltratado pelas administrações (todas) da história do município. Espero um dia poder desfrutar de boas viagens como as suas. Conhecer lugares novos, quase que sem nenhum compromisso, também é uma paixão pra mim. Abraços!
ResponderExcluirOlá Guilherme, obrigado pelos comentários, pelos elogios.
ResponderExcluirEmbora relatos de viagem carreguem o subjetivo, o olhar do viajante que varia sempre, eu procuro ser fiel ao que presenciei, sem inventar ou distorcer nada.
E vocë pode reparar isso nos demais relatos que publiquei e ainda publicarei neste blog. Já leu os das viagens pelos interiores da Amazönia?
Torço para que vocë consiga viajar do seu jeito e que depois nos conte como foi.
Abraços!