Consultamos as duas únicas pousadas instaladas nos tabuleiros de Tambaba. Uma estava lotada. A segunda opção, sem nenhum hóspede. Mas, porém, contudo, todavia, naqueles preços proibitivos, nem pensar.
No fim da tarde, na divisa entre Carapebus e Jacumã, acabamos por acertar pousada nem tão perto da praia, mas com preços honestos e conforto acima do esperado. Suados, esgotados de tanta estrada, calor, procura infindável por hospedagem, largamos tudo no quarto e voamos para a praia.
Deixamos o carro na beira do tabuleiro, descemos a falésia por escada estreita de madeira até faixa minúscula de areia. A maré bem alta batia nos paredões e apenas baías restritas e apertadas ainda expunham porções de areia seca. Os banhistas se concentravam nesses pontos ou mergulhavam nas águas do mar. Foi o que fiz de imediato. Meu corpo pegava fogo e precisava se refrescar urgentemente. Mesmo com o sol se pondo, as águas deliciosas do mar da Paraíba me devolveram a disposição perdida em dia desgastante de procuras. A visão das escarpas diretamente em contato com as águas do mar, restando somente resquícios de praias em miniatura, forneciam ao conjunto imagem atípica e envolvente.
À noite fomos comer tapioca na triste cidade de Jacumã. O principal do comércio, bares, restaurantes, sorveterias, se distribuía ao longo da própria rodovia estadual. Automóveis, motos, ônibus, caminhões, trefegavam a poucos metros das mesas dos fregueses, realçando o tempero dos comes e bebes com fumaça dos escapamentos. Um misto de descuido, indiferença, imediatismo, ganância, faziam com que moradores, turistas de temporada, comerciantes, administração pública, empurrassem com a barriga aquela situação de abandono. As levas de visitantes baixavam aos turbilhões na temporada, gastavam o que não tinham, aproveitavam como podiam, voltavam para as cidades de origem deixando para trás o lixo e os desserviços do balneário de Jacumã.
Aproveitamos a manhã seguinte, quente e ensolarada, para relaxar na praia do Coqueirinho. Em formato de baía, com as falésias atrás, encantava logo de cara. Porém o turismo de um dia das agências de João Pessoa, os condomínios e pousadas construídas como epidemia, bares e barracas na areia, lotavam a praia tirando-lhe parte da beleza natural. O grosso dos turistas se aglomerava ao redor dos bares e barracas de comes e bebes, como regra na maioria das praias do mundo. Curtas caminhadas, para norte ou para sul, nos livravam daquele tumulto, nos deleitando com praias vazias, limpas, tranquilas.
Atravessamos a cidade do Conde e retornamos à BR-101, na direção norte, abandonando-a para enganar o estômago em Mamanguape, cidade não distante da fronteira do Rio Grande do Norte. Acessamos ramal de estrada estadual, cruzando Rio Tinto, cidade marcada por construções que evidenciavam a influência sueca do colonizador.
Não muito depois entrávamos na cidadezinha de Baía da Traição, de frente para o mar do litoral norte da Paraíba. E acertamos pousada de frente para a praia, com quartos amplos e decorados com simplicidade e bom gosto. Nem pensávamos em repetir a tortura da busca sem fim por hotéis e pousadas do dia anterior.
Os fundos da pousada davam diretamente na larga faixa de areia da praia extensa, belíssima, com mar bravo. Os frequentadores se concentravam no ponto onde havia quatro barracas de comes e bebes, no sentido do centrinho da cidade. Fora disso, praia praticamente deserta, limpa, preservada, exuberante, convidativa.
Andamos despretensiosamente, passamos ao lado do ajuntamento de barcos de pescadores ancorados na praia. A maré cheia batia nos paredões do centro da cidade. Parte de praça já danificada apontava o avanço mal humorado do mar. Nesse ponto as construções atingiam o ponto limite da praia, entre paredões de cimento das casas, raras pousadas, bares e restaurantes, todos simples e precários. Em alguns trechos foi preciso esperar o mar recuar para passar. Mais adiante a praia voltava a se esvaziar, se estendendo ao norte. Pouco antes da linha do horizonte, já em terras do Rio Grande do Norte, centenas de coletores de energia eólica compunham a paisagem próxima ao mar.
Ainda entregues à bem-vinda preguiça depois de dias de estrada, fizemos o caminho de volta, pela areia da praia, chapinhando nas águas e espumas brancas do mar. Encostamos o esqueleto em barraca simples, matamos a sede com águas de coco. Almoçamos na própria pousada comida apenas comível.
Mais preguiça à tarde. Pelo menos enquanto o sol do lado de fora torrava os miolos. Depois, me reanimei com mergulhos merecidos no mar de ondas fortes, recuperando as energias, refrescando o corpo.
Comemos na pousada novamente no jantar. A comida, para variar, não empolgou. E um hóspede troglodita ainda trouxe um equipamento de som portátil para a mesa do restaurante, vomitando aquilo que ele queria ouvir e que nos obrigava a ouvir também. A esposa e os filhos do indivíduo chegaram mudos e saíram calados, de cabeças baixas, engolindo a comida que o dito cujo escolheu. O ambiente valeu, porém, pelo vento forte e constante que soprava do mar, revolvendo toalhas de mesa, cabelos, tudo.
A pousada era suavemente dirigida pelo casal proprietário, um estadunidense e o companheiro brasileiro. E a equipe decepcionava na cozinha. Cardápio desequilibrado, sem as necessárias variações, falta de carinho no preparo dos pratos, desarmonia dos temperos, sabores que não empolgavam. Como uma compensação, o casal costumava decorar os cantos dos pratos com uma florzinha aqui, um arranjo com legumes ou verduras ali. O estadunidense se desdobrava em sorrisos e trejeitos do corpo invariavelmente molhado de suor.
O gringo diariamente nos oferecia ovos durante o café da manhã. E perguntava se queríamos mexidos, dobrados ou fritos, com a clara dura e gema mole. Registrado o pedido, ele corria esbaforido para a cozinha. E trazia os ovos acompanhados de alguma meiguice decorativa no canto do prato.
Saímos a caminhar para o lado mais deserto da praia. Esta longa porção da baía se estendia para sul, decrescendo o número de habitações no alto da areia, até não ter mais nada, apenas o mar e a areia. Depois de uma ponta, outra vasta baía ainda mais deserta. Nos fundos da praia, sobre o barranco, placas da FUNAI indicavam início de território indígena demarcado, proibindo a entrada de estranhos.
Nas praias, natureza bruta, somente ameaçada pelos eventuais triciclos motorizados trafegando pelas areias. Aquelas coisas, alugadas no centrinho de Baía da Traição, conduziam clientes que desrespeitavam os limites dos trechos permitidos para circulação. E passavam a toda velocidade pelas areias mais frequentadas, ameaçando banhistas, sobretudo crianças.
Entre conversas esclarecedoras com uma espécie de faz tudo na pousada, aprendemos um pouquinho da cultura potiguar, etnia à qual pertencia e em cujas terras demarcadas ele vivia com a esposa e os filhos. Somente os potiguares legítimos ou os que se casavam com um deles tinham o direito a morar no território indígena e gozar dos parcos direitos dos povos originários, garantidos pela constituição federal e pelo estatuto do índio. Ele se mostrou bastante consciente dos direitos conquistados, embora reconhecesse a insuficiência deles a fim da comunidade viver decentemente em tão poucas terras, cercadas por todos os lados pela devastação socioambiental dos brancos. Lamentou que o Brasil tivesse reparado tão pouco os crimes cometidos contra os povos indígenas nesses quinhentos e tantos anos de ocupação.
Retornamos ao centrinho de Baía da Traição pretendendo encontrar algo substancioso para almoçar que não fosse peixe, frutos do mar ou derivados. O bar e restaurante escolhido ocupava construção ampla e velha, se projetando sobre a praia central e ameaçada pelos avanços do mar. Arriscamos carne de boi grelhada e nos demos bem. Já a caipirinha que ousei pedir veio com cara e gosto de tudo, menos de caipirinha. Nem com imaginação aditivada eu conseguiria sentir lembranças do sabor da cachaça, do limão, do açúcar. Ela chegou num copo alto, cheio de gelo, preenchido de líquido de coloração cinza esverdeada, canudinho, mais de meia hora depois do pedido. Provavelmente ligaram ou chamaram alguém distante para auxiliar no preparo de algo tão exótico para o bar. Até dei uns goles, mas o gosto de cabo de guarda-chuva não me animou a insistir. Relaxei e aproveitamos a vista maravilhosa da praia da cidade, o mar calmo de ondas pequenas, o pequeno movimento de vaivém dos frequentadores, os barcos de pescadores encalhados na maré baixa, a extensa linha do recife com o farol na ponta, os coletores de energia eólica no fundo do horizonte ao norte.
O entardecer encantou com a luminosidade do sol se pondo, da paisagem tingida pelos tons amarelados e alaranjados, da lentidão e preguiça da maioria. Ainda deu tempo de, no caminho de volta, mergulhar no mar bravo nas imediações da pousada, reanimando e repondo as energias gastas no dia quente.
Lanchamos no próprio quarto da pousada os comes e bebes adquiridos em supermercado. E, claro, para não perder o costume, adormecemos cedo, muito cedo.
Instalamos repelente de tomada. Acendemos a espiral a fim de gerar fumaça para espantar mosquitos. Até apelei em borrifar repelente líquido nos braços e orelhas. Tudo para evitar o massacre dos pernilongos das noites anteriores. Nada feito. A situação até piorou com toda essa parafernália química. E a noite pareceu mais quente e abafada que as demais. Perdemos de goleada aquela guerra noturna.
continua...
Puxa, que narrativa interessante e tão rica em detalhes...adorei. Deu vontade de sair por aí me aventurando nessas praias lindas e conversando com esse povo pra lá de hospitaleiro...pelo menos foi essa a experiência que vivi há bastante tempo. Que legal, Augusto! Senti cada detalhe como se estivesse lá. Obrigada. Inês Azevedo
ResponderExcluirOi Inês!
ResponderExcluirMais uma vez, obrigado pela visita e pelos comentários.
Viajar solto, sem maiores roteiros ou reservas, sempre gera mais prazer e satisfação. Até os percalços, se levados no bom humor, enriquecem as explorações.
E toda essa sensação se reflete nas narrativas e reflexões dos relatos aqui publicados.
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