Cruzamos cidadezinhas paraibanas adormecidas naquela manhã de domingo, como Mogeiro, Itabaiana, Juripiranga. Pela rodovia, crianças e adolescentes tapavam mais ou menos os buracos do asfalto com areia e terra vindas das margens. E estendiam as mãos aos motoristas que por ali trafegavam na esperança de pingar algum como recompensa. Tais cenas se repetiam a cada maior depressão da estrada onde eram mais comuns os buracos surgidos durante as chuvas.
Bastou cruzarmos a divisa com o estado de Pernambuco para o bucólico do agreste paraibano, pouco cultivado, dar lugar a canaviais sem fim, usinas soltando fumaça pelas chaminés, caminhões e treminhões pela rodovia, restos de cana no leito e margem da estrada, trânsito intenso, poluição, natureza degradada. Era a economia capitalista em movimento. Entrávamos em cheio no miolo da zona da mata pernambucana, com cidadezinhas agitadas, feias, pobres, sujas, entre Ferreiros, Timbaúba, Aliança, Nazaré da Mata. O dinamismo e a injustiça social se escancaravam. Nem precisava muito esforço para notar a pujança econômica aliada à ausência de serviços públicos elementares.
Pouco antes de Carpina apareceu Tracunhaém. Ali entramos e fomos circular do jeito que se deve, ou seja, a pé. O local se notabilizava pelas manifestações de arte popular, sobretudo nas esculturas em madeira, barro, cerâmica. Lojinhas, centros cultuais, ateliês dos próprios artistas, exibiam objetos de diversos tamanhos, formas, cores, estilos, preços. Éramos recebidos com simpatia e sem pressões para vender isso ou aquilo. Faziam questão de explicar as origens, os estilos e motivações que marcavam cada artista.
Retornamos à rodovia. E mais caminhões e treminhões, vazios ou carregados de cana, infinitas monoculturas de cana, chaminés fumacentas das usinas, tráfego intenso, transporte de trabalhadores em condições sofríveis, vilarejos paupérrimos. Igrejas e capelas antigas se erguiam esparsas no meio de tudo. Após a cidadezinha de Araçoiaba, surgiu do nada, na margem de curva acentuada, próximo à usina imensa e ainda mais poluidora, obelisco daqueles da época da invasão do Brasil pelos portugueses. Nele havia o brasão, inscrições, tudo que tinha direito para marcar a posse do estrangeiro.
E batemos de frente com o trânsito infernal da famigerada BR-101. Mas por pouco tempo, felizmente. Entramos no acesso à cidade histórica de Igarassu. Seguimos à cidade de Itapissuma, erguida na margem do canal sobre o qual a ponte liga o continente à Ilha de Itamaracá.
Partimos para arriscar o que parecia ser a única opção de hospedagem por ali. Fechamos negócio. Assim transformaríamos Itapissuma em base para visitarmos Recife, Olinda, Ilha de Itamaracá, Igarassu.
Itapissuma vivia a festa de São Gonçalo do Amarante. Naquela tarde haveria a procissão marítima trazendo a imagem do santo de volta para a igreja da cidade. Era a “buscada” conforme expressão afixada nas faixas espalhadas pela cidade. E a programação da festa ainda duraria mais de uma semana, incluindo procissões, missas, barracas de comes e bebes pelas ruas, brinquedos infantis, sem falar nas apresentações musicais em palco especialmente montado, atividade esta onipresente em qualquer desses eventos, seja religioso, comercial, cívico, industrial, político, militar, etc.
Só com o café da manhã tomado em Ingá, saímos a pé na procura de algo substancioso para encher a pança. Na margem do canal havia comedores improvisados, um ao lado do outro, repletos de mesas e cadeiras com vista para as águas. O cardápio se restringia a caldeiradas de peixes e frutos do mar. Tudo já estava preparado de antemão. Pediu, chegou. Adoro e sempre busquei caldeiradas em viagens pelos interiores e litoral do Brasil. Mas aquela frustrou do início ao fim. Maçuda, enjoativa, excesso de sabores e temperos se disputando num só prato. A fome, a falta de perspectivas nas redondezas, a vista reconfortante das águas do canal, a alegria contagiante dos frequentadores, de certa forma, nos ajudaram a empurrar aquela gororoba. Mas não foi fácil. Enchemos a barriga, somente isto.
E lá fomos nós perambular pelas imediações da igreja matriz e beira da água do canal no aguardo da buscada da imagem de São Gonçalo do Amarante. Os fiéis, turistas regionais, curiosos, aos poucos se aglomeravam nos melhores lugares. Andamos, sentamos, levantamos, paramos aqui e ali, sentamos novamente, circulamos mais, e nada da procissão aparecer no horizonte. Mais gente se postava nas muradas da margem do canal, dirigindo os olhares para sul, na esperança de notar uma concentração de barcos a caminho. Rojões estouravam. Aumentava a movimentação, em terra e nas águas.
Enquanto isso, pudemos notar propagandas políticas a reboque da festa. Faixas na cidade e na ponte, bandeirolas, cartazes, em terra, nos barcos, nas muradas, nos ancoradouros, em toda a parte. Apareciam mais nomes e dizeres dos coronéis locais, prefeitos, vices, vereadores, deputados, aspirantes a cargos variados, do que frases referentes ao santo homenageado. O nome do prefeito entupia a visão de qualquer direção que se olhasse. Verdadeiro massacre visual. Tanto que fiquei em dúvidas de, entre os políticos e a hierarquia religiosa, quem se aproveitava de quem.
O sol já se inclinava no horizonte, o entardecer avançava, quando, bem a sul e ao fundo do canal, a concentração de barcos tomou vulto, navegando em nossa direção. Rojões estouravam, vindos de terra, dos barcos, daqueles próximos aos ancoradouros e daqueles no entorno da procissão. O povo se espremia nas muradas perto das águas, não se cabendo de emoção. A imagem do santo vinha em destaque no convés de embarcação ao estilo dos invasores portugueses. Dezenas de barcos a acompanhavam. Barcos pequenos, grandes, simples, sofisticados, iates, canoas, os maiores com passageiros fantasiados e dançando ao som de músicas carnavalescas. E muitos rojões.
O barco aportuguesado atracou num dos ancoradouros, sendo recepcionado por coroinhas e religiosos em geral vestidos impecavelmente de branco e vermelho. Mas a imagem não seguiu para a igreja, nas imediações da qual nos postamos para a chegada triunfal. Ela ainda partiria em procissão pelas ruas de Itapissuma antes de retornar aos interiores da matriz, na frente da qual as senhoras e os senhores esperavam sentados em cadeiras no topo das escadas.
Bem mais à noite, as cenas de Itapissuma que antecediam às famigeradas apresentações musicais desencorajavam. Bêbados aos montes, homens e mulheres, de idades variadas, uns caindo pelas tabelas, outros se oferecendo e atacando como presas e predadores. Tudo feio, sujo, fedido. Desanimador. E os produtos comerciais da temporada ainda nem haviam subido no palco.
Depois de noite bem dormida em quarto confortável, nos sentamos à mesa do café da manhã. Não havia esquema de bufê e a copeira foi trazendo os itens, um a um. Carne moída ao molho, moela de galinha ao molho, macaxeira, cuscuz de milho, ovos fritos, pão, manteiga, queijo, presunto, café ralo, leite. Ao recusarmos educadamente os três primeiros, ela estranhou e ofereceu carne de charque. Nova recusa. Sugeri frutas e sucos e a moça perguntou espantada, “vocês comem isso?”. Mas trouxe a jarra de suco natural de frutas da terra, mais melancia e mamão. Após o susto, todos se salvaram.
Pegamos a BR-101 rumo sul e batemos de frente a longo e irritante congestionamento logo nas imediações da cidade de Abreu e Lima. Algum acidente, bloqueio, obras na pista, chuvas, outra eventualidade? Nada disso. Apenas excesso de veículos acarretando congestionamento rotineiro naquela rodovia duplicada que nos levaria a Recife. Inferno total. Consequências desse Brasil estupidamente rodoviário e de joelhos diante da indústria automobilística. Dinheiro do povo, tempo e mão de obra foram gastos na construção e depois na duplicação da dita cuja para servir aos interesses das transnacionais do transporte rodoviário. Nem sinal de ferrovias, seja para cargas ou passageiros. Nada diferente da situação calamitosa pelo Brasil afora. Tudo para as rodovias, automóveis, caminhões. Nada para o transporte coletivo de qualidade para o povo, preferencialmente sobre trilhos.
Demoramos duas horas para percorrer quarenta quilômetros. Deixamos o carro no estacionamento da rodoviária de Recife e percorremos de trem a longa distância até o centro da cidade. Aí sim, transporte eficiente, rápido, seguro, confortável. Simples e fácil.
Percorremos a pé as ruas e becos da ilha de Santo Antônio e São José, pelas diversas pontes ligando essa à ilha do Recife Antigo. Nos deslumbramos com a Capela Dourada e o mosteiro de São Francisco, com as inúmeras igrejas que se acumulam no centro velho de Recife. Andamos nos labirintos em meio às bugigangas oferecidas nos corredores estreitos do mercado de São José. Observamos o movimento nervoso das avenidas, dos recifenses a trabalho, nas compras, apenas perambulando. O sol se impunha e torrava nossas cabeças, mesmo protegidas pelos providenciais chapéus.
Reservamos mais tempo pelas ruas da ilha do Recife Antigo, as construções históricas nas imediações do marco zero da cidade, o mar, as esculturas e torres de Francisco Brennand em frente, os restaurantes, bares, botecos, centros culturais. Famintos, entramos em restaurante por quilo bem frequentado pelos funcionários das redondezas. Estranhamente não havia saladas no bufê. De nenhum tipo. Nem uma rodela de tomate, uma folha de alface, uma fatia de cenoura, um anel de cebola. Pelo menos me esbaldei na jarra de suco de caju.
Fizemos passeio de barco pelos rios Capiberibe e Beberibe, mais especificamente ao longo dos trechos que margeiam as ilhas do centro histórico de Recife. Visão que realçou o charme e beleza da capital pernambucana, ainda mais sob a luz do entardecer. Antes do embarque, descendo de outro barco atracado depois de filmar um documentário, assistimos a figura pitoresca de Reginaldo Rossi, ostentando cabelos cobreados, em eterno sorriso, saudando todos, sendo fotografado pelos fãs que faziam fila para abraçá-lo. No final acenou e se despediu com o sonoro “ateé luooogo”.
Mas tínhamos que tomar o trem de subúrbio, pegar o carro e encarar novamente os horrores da BR-101 duplicada de volta a Itapissuma. Já era noite quando tentávamos sair de Recife. O congestionamento massacrava de qualquer direção. Chamar aquilo de inferno seria um eufemismo. A rodovia BR-101 torturava. O tráfego de automóveis e caminhões pouco avançava. Cruzar o munícipio de Abreu e Lima, pertencente à região metropolitana de Recife, novamente beirou à insanidade, tal à desorganização e engarrafamento do trânsito. E novamente os quarenta quilômetros de Recife a Itapissuma pareceram quatrocentos.
continua...
Li com muita atenção seu relato, especialmente quando mencionou Recife, onde morei dos 14 aos 26 anos. O que mais posso dizer? Vc me mostrou um outro "Recife", pois na época eu estudava e ia à praia nos fins de semana. Estive no centro histórico uma vez, mas as lembranças agora são bem vagas. Que bom poder ler mais sobre um lugar onde fui tão feliz, mesmo sabendo que vc vai desvendar o "outro lado" dos lugares por onde passei. Ansiosa para ler sobre Olinda e Itamaracá. Um abraço. Inês Azevedo
ResponderExcluirOi Inês! Obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirFico feliz que meu olhar nessa viagem possa contribuir para sua análise sobre Recife e outros lugares que você e eu percorremos em tempos diferentes e sob condições distintas.
Há as demais partes dos relatos dessa viagem e de outras tantas explorações pelos interiores do Brasil e já publicados neste blog que espero enriquecer suas avaliações.
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