quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Uzbequistão e Turquia (parte 8/8)

...continuação
Cruzei a porta da fortificação murada e entrei no complexo de ruínas pertencentes à Ani, antiga capital da Armênia e datada de cerca de mil anos. A cidade que chegou a abrigar cem mil habitantes foi abandonada e estava completamente deserta. Somente meia dúzia de turistas isolados perambulava pelas trilhas. Erguidas espaçadamente na ampla área da cidade murada, as construções apresentavam diferentes estágios de conservação.
Me perdi durante horas pelos caminhos que levavam de uma construção a outra, analisando carinhosamente uma a uma, não deixando de contemplar a garganta profunda pela qual corria riacho sinuoso e de águas nervosas, compondo acidente geográfico que dividia a Turquia da Armênia. Andei livremente, sem pressa e sem o roteiro pré-definido das páginas dos guias previsíveis. O tempo ajudava, nem frio, nem calor.  
Além das construções levantadas em escarpas improváveis, quase despencando paredão abaixo, me atraíram as duas igrejas de São Gregório, contendo afrescos e relevos ainda visíveis, além do Caravançarai, da Mesquita e da Catedral. O castelo, situado na extremidade alta e oposta ao portão de entrada, se resumia a escombros. Dali, visão panorâmica e completa de Ani, através da qual se poderia recompor na mente e no espaço a disposição de cada uma das construções, dos resquícios das muradas, do rio correndo veloz no vale profundo e contendo também ruínas da ponte de pedra, da desolação do lado armênio, da antiga e pequena igreja armênia inacessível e erguida acima da escarpa rochosa vertical, de outros vales ressecados e ocupados por rebanhos conduzidos por pastores que cantavam e gritavam. Eu e a companhia somente da paisagem, das ruinas históricas, do sol tépido, do vento incessante.
Como parte da antiga Rota da Seda durante séculos, de acordo com a placa indicando a trilha original, Ani funcionou com ponto de parada e reabastecimento, de trocas comerciais, culturais, filosóficas, religiosas, e outros tantos intercâmbios em ambos os sentidos, entre os povos ocidentais e orientais.
Do lado de fora, o motorista me aguardava numa improvisada casa de chá. Ambos para lá de famintos nos dirigimos à cidade de Kars, onde entramos em restaurante de esquina em que o proprietário e o único garçom exibiam expressões sonolentas. Comi bastante e bem, depois de escolher entre os pratos sob o balcão de vidro. Muitos pães, inclusive um longo, delgado e acinzentado, mais parecendo tecido de algodão de tão fino.
Andei sozinho pelos arredores do centro de Kars, por entre ruas comerciais e becos calçados de pedra. Casario antigo, muitos de origem russa, outros mesclados por influências armênias, persas, georgianas, da virada dos séculos XIX e XX, muitas das vezes utilizando rochas escuras nas paredes internas e externas. Mesquitas diversas, igrejas armênias exibindo o tradicional formato cilíndrico e de cúpula cônica, ladeiras com casas caindo aos pedaços que levavam aos altos da cidade, em cujo topo se erguia o castelo de Kars. Cafés, casas de doces, restaurantes, lojas de queijos e mel, a maioria bem decorada e prestigiada pelos moradores, se distribuíam pelas ruas centrais refletindo a variedade de culturas que a influenciaram ao longo da história.
Mais uma noite bem dormida sob o silêncio do hotel e da cidade.
No salão do café da manhã estava um grupo de europeus loiros. O que mais chamou a atenção, no entanto, foi o cheiro horrível que exalava do corpo deles. Um odor azedo, profundo, de vários dias ou semanas sem banho e troca de roupas. Fediam pavorosamente. O ambiente do salão, fechado pelo frio externo, beirava o insuportável. Assim que quatro turcos hóspedes entraram e sentiram a pestilência do salão, imediatamente franziram o cenho e tamparam os narizes. E abriram uma das janelas, justamente a mais próxima dos europeus fedorentos. O ar gelado e desconfortável do começo da manhã era infinitamente mais tolerável que a fedentina dos gringos provenientes do assim chamado primeiro mundo civilizado. Ao deixarem o salão, o mau cheiro começou a se dissipar, aliado à entrada de ar frio e fresco pela janela. Eu e os turcos respiramos aliviados e pudemos comer em paz, sem o risco de vomitar.
A partida de Kars ocorreu sob o céu nublado. À medida que a rodovia avançava para o oeste, subindo gradualmente o relevo, o céu começou a escurecer. No planalto, perto do acesso a Keçivan, a chuva caiu e irrigou naturalmente os campos sem fim em fase de semeadura da primavera. Junto com a chuva, a queda brusca da temperatura, forçando o fechamento das janelas do carro e o acionamento do aquecedor.
A viagem continuou por vale estreito e profundo, cercado por escarpas rochosas que afunilavam as águas do rio correndo ao lado esquerdo. Após o trevo para Sarikamis a chuva cessou, o relevo baixou gradualmente e a temperatura começou a amenizar.
A rodovia cruzou a cidadezinha de Horasan pela rua principal, movimentada pelo comércio e pelas inúmeras casas de chá, em frente das quais senhores sisudos e vestidos de cores escuras bebiam um copo atrás do outro, sempre dedilhando as contas na mão entre orações mentais, silenciosas, sussurradas.
Montanhas nevadas abauladas, sem cumes agudos e pronunciados, irrompiam em cada nova subida do relevo. E apontou no horizonte a cidade de Erzurum. O céu escurecia, as nuvens engrossavam e baixavam, ameaçando tempestades. Mesmo assim, abri bem as janelas do quarto do hotel para afastar o odor de cigarro impregnado.
Eu e o curdo andamos por ruas e avenidas na busca do típico prato de Erzurum, o cag kebap, preparado com carne de carneiro. Comemos muito e bem em restaurante decorado alegremente, cujas mesas externas se dispunham debaixo de tendas de madeira, contando com assentos atapetados e estofados e com o privativo samovar para tomarmos o chá.
A peça do carneiro era grelhada em fogo baixo ao redor de espeto alongado. Exceto pela posição horizontal da carne, o procedimento e o visual lembravam o famigerado churrasquinho grego de São Paulo e região. O gosto empolgou demais. As entradinhas do meze, entre iogurtes, pastas disso e daquilo, apimentadas na medida certa, arrombaram o apetite já aberto. E veio também a tigela repleta com o pão regional, alongado, largo, macio e finíssimo tal tecido de algodão. Para hidratar, água e copos de chá preto.
Erzurum se mostrava mais conservadora nos costumes que as demais cidades turcas pelas quais eu passara. Era menor o número de muçulmanas não praticantes. Menos mulheres com os cabelos e rostos descobertos. Aumentara a quantidade daquelas com rostos cobertos parcial ou totalmente, além dos mantos de cores leves, sobre a cabeça e os cabelos. E mais mulheres vestidas inteiramente de roupas pretas, compridas e largas, a fim de tapar tudo, deixando apenas a linha estreita para os olhos.
De expressões e posturas mais sisudas, os homens se vestiam de roupas escuras, tendo às mãos as inseparáveis contas de oração. Muitos se deixavam ficar horas e horas dentro das espartanas casas de chá, conversando em grupos, quietos com olhares parados, rezando em pensamento ou aos sussurros e, é claro, tomando sucessivos copos de chá preto. O costume dos homens andarem de braços dados se mantinha em Erzurum. O mesmo ocorria com os beijos nas duas faces do rosto quando eles se encontravam ou se despediam.
A despeito da aparência mais rigorosa, elas e eles se mostravam prestativos e acolhedores. Sorriam sempre aos encontros e despedidas. Em todas aquelas semanas pela Turquia, jamais me senti hostilizado ou mal tratado diante de nenhuma mulher ou homem, jovem ou adulto. Muito pelo contrário, os turcos e as turcas deixariam saudades pelo carinho, educação e simpatia.
Embora houvesse trabalhos de restauração nos principais monumentos históricos, como na madraça Çifte Minaroli, por exemplo, o casario antigo da parte velha da cidade estava sendo posto abaixo. Avistei sobrados abandonados, outros queimados ou em ruínas, a maioria faltando portas, janelas, paredes.
A modernização deliberada da Turquia, fato notado em várias cidades do interior e até mesmo nas imediações do bairro histórico de Sultanahmet em Istambul, vinha imposta, sem qualquer consulta ou debate com as populações afetadas. Como nos demais países da periferia do capitalismo, as demolições do antigo e as construções do novo atendiam ao grande capital financeiro de mãos dadas com o setor imobiliário. Do jeito que a coisa andava, pouco ou nada sobraria. Em futuro próximo, a Turquia contaria com ilhas de patrimônio histórico, dos quais a indústria do turismo aufere lucros astronômicos não revertidos para a população, mas cercadas por cidades modernizadas, padronizadas, sem personalidade. Os turistas em hordas visitariam as atrações turísticas isoladas, separadamente, e voltariam aos respectivos países sem qualquer contato com a Turquia real, com o povo e a cultura turca.
Problema social e cultural que não se restringe à Turquia e ao povo turco. A situação se repete pelo mundo afora. Em graus e ritmos distintos, mas está praticamente em todos os lugares.
E fez lembrar o instigante documentário A Síndrome de Veneza, exibido em festival de cinema em São Paulo. Embora não haja, por enquanto, previsões de demolições do casario veneziano, a busca do lucro a qualquer preço, o mercado imobiliário e a indústria predatória do turismo também têm implicado em sérios danos à população local. O documentário defende a tese de que o acelerado processo de fuga forçada dos moradores originais, em função da alta dos preços e da especulação imobiliária, transformará Veneza em cidade cenográfica antes de 2023. Uma Veneza sem venezianos. Veneza deixaria de ser uma cidade viva, mas apenas cenário de visitação.
Depois de cortar a planície fértil ao norte de Erzurum a rodovia começou a subir. À medida que aumentava o relevo, a temperatura diminuía e o vento gelado se acentuava. A estrada atingiu o topo no passo Kop Geçidi. Placas de neve cobriam a montanha árida e se aproximavam do leito da rodovia. Fora do carro e da casa de chá onde nos refugiamos fazia um frio terrível agravado pelo vento incessante. Os cachorros dos arredores nem pareciam sentir as baixas temperaturas, perambulando ou dormindo tranquilamente ao ar livre. Os copos de chá e o ambiente interno amenizaram o frio externo.
Pouco após o passo e estrada desceu lenta e sinuosamente. Depois de cruzar Bayburt, cidade guardada pela fortaleza no topo do morro, a estrada, entre altos e baixos do relevo, alcançou Gumushame, vila encravada no fundo do vale e cercada por escarpas rochosas.
Mais um passo, o Zigana Geçidi, a partir do qual a rodovia em obras desceu vertiginosamente, cortando vários túneis recém-construídos e serpenteando zonas úmidas, com florestas temperadas e muito verdes, casas esparsas posicionadas nas encostas, riachos com corredeiras.
Paramos para comer em restaurante simples e eficiente na beira da estrada com vista para as montanhas verdejantes. Fomos de carne de carneiro e koften grelhados, acompanhados de salada e cesta de pães abundantes e variados.
Mais abaixo, a vila de Maçka, onde dobramos rumo ao mosteiro de Sumela, via estradinha sinuosa e margeada por bosque de pinheiros, montanha acima, ao lado de riacho encachoeirado. O caminho ziguezagueava ao longo de vale estreito e profundo, entre curvas fechadas e precipícios, cruzando pontes frágeis, até o limite. A partir dali, somente a pé até o mosteiro.
O mosteiro de Sumela, construído por religiosos gregos no século X, e abandonado em 1923, quando da fundação da república da Turquia, foi erguido em posição improvável e espetacular na parede vertical da rocha, num claro desejo de isolamento de tudo e de todos.
Dentro, apenas a capela principal chamou a atenção, coberta de afrescos coloridos com temas religiosos, entre santos, cenas, textos, objetos sagrados. Infelizmente tudo estava violentamente depredado por turistas irresponsáveis e, conforme informações recebidas, por militares estadunidenses, sempre eles, durante exercícios militares na década de 1960.
Após a descida emocionante e não menos espetacular que a subida, e a passagem pelo vilarejo de Maçka, de volta à rodovia principal serra abaixo.
As ruas e avenidas de Trabzon surgiram ao entardecer. Fui esticar as pernas pela cidade na margem do Mar Negro. Mas nada atraía na beira nas águas. Largas e extensas avenidas, incluindo aí um minhocão ou viaduto longitudinal às vias e paralelo ao mar, verdadeiras aberrações urbanísticas, isolavam a população das águas marinhas.
Sob o céu nublado com chuviscos intermitentes visitei o museu da Aya Sophia que, assim como o homônimo em Istambul, já foi igreja cristã e mesquita.  A construção, pequena e charmosa, se erguia sobre colina com vistas para o Mar Negro.
Enchi o bucho com lamahcum e me hidratei com ayran em estabelecimento tocado pelo comunicativo e fanático torcedor do Trabzon, time de futebol muito popular na região. Pena que eu não falava e nem entendia turco.
Ao contrário da conservadora Erzurum, a cidade de Trabzon exibia leveza e descontração na aparência geral dos moradores. Claro, lá estavam eles e elas praticantes do islamismo, vestindo roupas indicativas. O jeitão geral, porém, apontava para o contrário. O urbanismo ao longo das encostas das colinas, em direção ao mar Negro sem praias, abrigava gente que também queria viver e se divertir livremente, se vestindo e se comportando mais ousadamente, pouco se importando com os ditames de comportamento religioso.
Acordei bem cedo para pegar o voo de volta a Istambul. Enganei o estômago sem café da manhã com um simit fresquinho e vendido próximo ao portão de embarque.
Fazia calor suave em Istambul, denunciando o avanço da primavera. As barraquinhas de castanhas assadas dos meses anteriores iam dando lugar às de melancias cortadas. Parecia impossível, mas Istambul no início do mês de maio estava mais cheia de turistas do que em março e abril. Mal se podia andar pelas ruas e becos de Sultanahmet. Os rebanhos de turistas eram vomitados dos ônibus, todos com as câmeras fotográficas nas mãos, armadas para disparar e registrar qualquer coisa que aparecesse pela frente, de qualquer maneira. Na verdade, mais se fotografavam próximos às atrações turísticas. Estas funcionavam apenas como pretextos ou cenário para poses e sorrisos previsíveis. E tudo rápido, muito rápido, pois o guia, hasteando a bandeirola de identificação, os tocava para seguir em frente a fim de ticar na lista a próxima atração do roteiro.
Me despedi da noite de Istambul dando uma caminhada sem pressa pela praça do Hipódromo, de onde se tinha visão privilegiada das colunas milenares dos conquistadores de Bizâncio e Constantinopla, da mesquita de Sultanahmet (Azul), da Aya Sophia, ambas charmosamente iluminadas.
Voltei ao hotel para madrugar na manhã seguinte.
Ainda estava escuro quando entrei na plataforma do bonde, que me levaria ao metrô e este ao aeroporto.
Encontrei o casal que viajara comigo pela Anatólia ocidental no acesso ao controle de passaportes. A fila quilométrica ziguezagueava pelas cordinhas de segurança. Muitos selvagens do chamado “mundo civilizado”, todos loiros e de olhos azuis, a furavam descaradamente, diante da complacência de alguns e a indignação de outros.
O voo correu tranquilo. Aproveitei para detonar o Ópera dos Mortos, de Autran Dourado. Li o livro de ponta a ponta entre as refeições, uns breves cochilos, providenciais esticadas de braços e pernas. Virei a última página antes do pouso em São Paulo no começo de maio.

7 comentários:

  1. Oi Ana Lúcia, obrigado pelos comentários e os elogios!
    O que escreve se torna um baita incentivo para eu continuar viajando, observando e refletindo, continuar escrevendo e relatando, continuar divulgando meus olhares e passar a todos as subjetividades do que vejo e sinto nessas experiências pelo Brasil e, nesse caso, pelos meandros de outros países pelo mundo afora.
    Valeu e comente sempre!

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  2. Uma maneira de viajar ,sem precisar ir,adoravel!!!!inteligente,bem pontuado.Obrigada. Parabens.......apenas continue.Abs mara de vuono

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  3. Olá, Mara, obrigado pela visita e pelos elogios. Servirão como incentivo a prosseguir viajando e relatando o que vejo e sinto nessas experiências culturais.
    Publiquei relatos de viagens para todos os gostos, pelos interiores do Brasil e outros países da América, Europa, Ásia.
    Conto com seus comentários.
    Abraços!

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  4. Olá Viajante, passei para lhe desejar o mais doce dos Natais, com toda a família reunida. E porque Natal é também tempo de agradecer, aproveito para dizer "obrigada" pela sua amável presença n'O Berço ao longo do ano.
    Um abraço desde Luanda
    Ruthia d'O Berço do Mundo
    http://bercodomundo.blogspot.com/

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  5. Oi Ruthia,
    Obrigado pelos votos que retribuo para todos vocês.
    Um 2015 cheio de solidariedade e viagens de aprendizado.
    Está em Luanda?
    Abraços de São Paulo.

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  6. Parabéns pelo blog e pelos relatos. Encontrei vocês na internet e não paro de ler. São tantas opções bem escritas e registrados com reflexões pertinentes.
    Lindo o texto e as fotos sobre a Turquia. Os anteriores também.
    Viaja por conta própria?
    Abração.

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  7. Olá, valeu pela visita e pelos comentários. Obrigado!
    Viajo por conta própria na maioria dos casos. Mas também, quando compensa contratar uma agência ou guia local, opto por essa alternativa.
    Publiquei diversos relatos aqui, seja dos interiores do Brasil, seja de outros países da América, África, Ásia, Europa. Leia, comente, divulgue..
    Abraços!

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